quarta-feira, 29 de junho de 2011

Memória emotiva



"Você acaso espera que um ator invente toda sorte de sensações novas ou até mesmo uma alma nova para cada papel que interpreta? Quantas almas teria de abrigar? Por outro lado, pode ele acaso arrancar fora sua própria alma e substituí-la por outra, alugada, por julgá-la mais adequada a determinado papel? Onde é que irá buscá-la? Podemos tomar de empréstimo roupas, um relógio, todas espécie de coisas, mas é impossível tomar de outra pessoa sentimentos. Os meus sentimentos são meus, inalienavelmente, e os seus lhe pertencem da mesma forma. É possível compreender um papel, simpatizar com a pessoa retratada e pôr-se no lugar dela, de modo a agir como essa pessoa agiria. Isso despertará no ator sentimentos análogos aos que o papel requer. Mas esses sentimentos pertencerão não à pessoa criada pelo autor da peça, mas ao próprio ator." (A preparação do ator, Constantin Stanislavski)

Eu sempre achei que não sabia usar minha Memória Emotiva em cena, até me dar conta da amplitude desta expressão criada por Stanislavski.
Quando preciso preparar uma cena tento relacionar a vida do personagem com a minha, buscando alguma semelhança no comportamento, ou em uma situação análoga que eu possa ter vivido.
Portanto, recorro à minha memória quando estou em processo de estudo da cena, porém quando interpreto não penso em nada que não tenha a ver com a minha personagem.
Eu achava que não usava a memória emotiva, pois enquanto faço a cena não penso em algo que aconteceu na minha vida particular, inclusive isso me desconcentra, eu simplesmente deixo a cena fluir...
Mas a memória emotiva está ligada à memória sensorial, uma instiga a outra e muitas vezes um olhar de desprezo, um beijo, um tapa na cara, um abraço, pode despertar a memória das emoções.
Em cena, esses momentos passam despercebidos, e as suas lembranças e sentimentos podem fundir com as do personagem em fração de segundos, e dissipar na ação seguinte do personagem.
Sentimentos e sensações surgem verdadeiramente em cena, significa que os estímulos em cena atuam não só sobre a personagem, mas antes sobre o ator.
Ou seja, a Memória emotiva está em ação!
Acredito que enquanto atuamos, não podemos ser completamente técnicos ou totalmente tomados por fortes emoções.
Mas será que nos momentos que somos técnicos estamos estimulando a memória das emoções/sensações e as usando em cena?
Quando usamos uma técnica de respiração para chegar a uma sensação ou emoção, por exemplo, estamos acessando intuitivamente a nossa memória das emoções/ sensações? O que fazer se durante uma cena vier à tona uma emoção equivocada que nos faz perder o controle das ações da personagem?
Ainda acho muito difícil ter o controle desta técnica, mas aos poucos descobrimos mais sobre nós mesmos e nossas emoções.
Em 2006, na apresentação da peça "Para quem não usa Ritalina", de Tom Dupin, eu interpretava a Soraia, uma garota sonhadora que era estuprada pelo seu patrão no final da peça. O estupro não acontecia, a cena se congelava no momento que o patrão de Soraia ia para cima dela e o foco continuava por aproximadamente 10 minutos em outra cena que acontecia no proscênio.
Ensaiei a peça durante 4 meses e aquela cena nunca me causou nenhum tipo de incômodo. Eis que no dia da estreia, durante a cena, eu começo a chorar compulsivamente. Consegui chorar sem fazer barulho. Sabe aquele choro que você abre a boca e quase perde o ar? rs Meu parceiro de cena, querido amigo Edson Gon, me dizia baixinho: fica calma, fica calma. Eu chorei até o final da peça.
Se eu te dissesse que me lembrei de alguma tristeza profunda da minha história de vida estaria mentindo. Eu não pensei em nada. Eu não me lembrei de nada. Acredito que a tensão da minha personagem continuou crescendo ao invés de congelar junto com a cena e foi estimulada pela sensação de sufoco e aprisionamento, pois a personagem do Gon estava em cima de mim. Aquela sensação se tornou uma emoção muito forte e ao mesmo tempo uma repulsa, mas não da atriz Carolina, e sim da personagem Soraia.
Houve uma outra vez que gravei um monólogo e um professor me aconselhou fazer uma substituição de circunstâncias. O monólogo era uma declaração de amor para um amigo, e tinha um trecho que a personagem dizia o seguinte: "Eu queria que você soubesse que mesmo que isso não dê em nada, já valeu. Já valeu a pena por tudo que eu experimentei assim, sozinha...Na solidão dos meus pensamentos, dos meus desejos". A ideia era fazer a declaração, mas com estímulos diferentes. Eu diria este texto pensando que o assunto era o meu amor não pelo meu amigo, mas sim pela arte, pela minha carreira. Eu faria o monólogo pensando o quanto era importante para mim estar ali e pensando na minha luta diária para conquistar o meu espaço. O resultado foi muito positivo. Quando eu chegava no trecho do texto que transcrevi há pouco, era a parte que eu mais me emocionava.
Este professor foi muito sensível ao perceber que isso seria algo que me emocionaria e ao mesmo tempo despertaria um sentimento similar ao que a cena pedia.
Acho que esses dois momentos na minha carreira tem muito a ver com o tema abordado neste post.
Ainda tenho diversas dúvidas sobre a prática de Memória Emotiva e Memória Sensorial, mas com as pesquisas, auto- análise e observação tudo começa a clarear e fazer sentido.
Ah! Acho importante ressaltar que reli o capítulo sobre Memória das Emoções do livro "A preparação do ator", de Stanislavski. Havia lido há 9 anos atrás e garanto que hoje em dia tudo faz muito mais sentido para mim.
Em paralelo li o livro do Renato Ferracini "A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator" e o livro de Uta Hagen "Técnica para o ator. A arte da interpretação ética", ambos falam sobre Memória das emoções e Memórias das sensações.
Farei a parte 2 deste tema para que possamos rever conceitos que serviram de base e ponto de partida para os demais estudos sobre a arte de interpretar.

Se quiser fazer algum comentário, relatar alguma experiência profissional ou pessoal ou então partilhar informações, fique à vontade.

(A foto acima é de uma cena da peça "Para quem não usa Ritalina". Uma homenagem ao meu caro amigo Edson Gon, que presenciou um momento equivocado, mas muito importante da minha carreira. Que só hoje posso compreendê-lo e aceitá-lo como parte deste complexo processo de aprendizagem do ator).

terça-feira, 7 de junho de 2011

O céu é o limite!


Olá, queridos!
Já faz algum tempo que não postamos nada, eu sei, mas há alguns momentos na vida em que esse tempo é preciso.
E isso acontece por diversos motivos, ou porque precisamos digerir informações, refletirmos sobre conceitos, ou então por precisarmos avaliar determinados acontecimentos para decidirmos qual é o melhor caminho a trilhar.
Muitas vezes recebemos sinais que nos avisam quando o momento chega.
Sinais estes que podem surgir através de algum conselho, de uma intuição ou do seu próprio corpo pedindo socorro.
Eu respeito muito estes sinais, e já faz algum tempo que estou vivenciando um "intervalo".
(Juro, não era sobre isso que queria postar hoje, minha ideia era escrever sobre Memória Emotiva, estou lendo muitas coisas a respeito e me surgiram várias dúvidas que eu gostaria de dividir com vocês, mas acredito que essa justificativa é imprescindível para recomeçarmos, mesmo porque ela também é uma questão muito importante para estar em pauta hoje)
Meu corpo gritou, gritou e eu não quis ouvir e lutei contra seu pedido de socorro com todas as minhas forças. Mas ele foi mais forte do que eu. Fique "tonta". Sem chão. E caí.
Deitada no chão vi tudo girando sobre mim. De um ângulo que ainda não tinha visto.
Do lado de fora de todo aquele tornado, vi minhas angústias, meus anseios, minhas vontades, meus caprichos, meus sonhos, minhas dúvidas, minha criação, minha personagem, meus medos, meu LIMITE.
Sim, eu havia chegado ao meu limite.
É frustrante para qualquer ser humano perceber que não consegue ir além dos obstáculos da vida para chegar ao resultado que havia planejado, ou que ainda não é o momento para enfrentar determinadas provas.
E como funciona esse momento crucial na vida de um ator? Até onde devemos ir com a nossa "gula" por vivências? Devemos permitir que elas aconteçam naturalmente e assumir que não estamos prontos psicologicamente ou fisicamente para determinados personagens? Somos fracos por não nos aprofundarmos num universo que não temos o controle? Devemos perder o controle até achar o equilíbrio? Limitar-se é não dominar a técnica, ou não ter repertório suficiente de experiências vividas?

Estou lendo o livro "Técnica para o ator - A Arte da interpretação ética" de Uta Hagen com Haskel Frankel, tem um trecho que achei muito interessante, em que ela diz:
"Um jovem pianista talentoso, hábil na improvisação ou em tocar de ouvido, pode ser uma sensação passageira num night club ou na televisão, mas sabe que é melhor não tentar um concerto para piano de Beethoven. Os dedos do pianista simplesmente não conseguirão executá-lo. Um cantor pop com a voz destreinada pode ter sucesso semelhante, mas não com uma cantata de Bach, porque romperia as cordas vocais. Uma bailarina sem treino não tem esperança alguma de dançar em Giselle, pois romperia os tendões. Em sua tentativa, eles vão arruinar o concerto, a cantata e Giselle também para eles mesmos, pois se um dia finalmente estiverem preparados, só se lembrarão dos erros do passado. Mas um jovem ator, se tiver a oportunidade, vai mergulhar em Hamlet sem pensar duas vezes. Ele deve aprender que, enquanto não estiver pronto, está destruindo a si mesmo e ao papel."

Sei que esta não é uma verdade absoluta, pode até ser que existam atores geniais e prontos que não precisem de amadurecimento e técnica para atuar lindamente em "Hamlet" ou em qualquer outra grande obra, mas os dizeres de Uta me confortam perante a minha decisão. Não estou tranquila e relaxada quanto a isso. Pelo contrário. Mais do que nunca quero descobrir caminhos que me façam chegar ao domínio dessa técnica.
Talvez ter abdicado, com consciência, de algo tão importante para mim por saber que não estava pronta, já seja o início de um caminho rumo a autodescoberta.
Sem limites.
O céu é o limite!